A primeira vez que li esse livro fiquei com uma boa impressão. Primeiro, é um tipo de exercício historiográfico que me interessa: problematizar a história na longa duração. Segundo, porque se propõe, a partir da história, a debater problemas contemporâneos candentes. Terceiro, porque, mesmo sendo liberal, apresenta críticas adequadas (mas limitadas) ao imperialismo e à forma como o capitalismo se desenvolveu. Por isso, eu achava que era um livro que valia a pena ler. No entanto, ao tentar relê-lo, dei-me conta de alguns problemas graves que atravessavam o pensamento do autor. Apresento, abaixo, dois tímidos comentários. Sugiro a leitura de uma ótima crítica escrita por dois arqueólogos, aqui.

Sobre a chegada humana à América, ou sobre como jogar informações incômodas para debaixo do tapete

No livro Sapiens, a chegada dos humanos na América é datada em 16 mil anos atrás. No início, pensei que fosse engano. No entanto, a data revela uma escolha. Explico.

A ideia de que os seres humanos chegaram na América há 13-16 mil anos atrás está relacionado com a Teoria Clóvis, de que caçadores teriam chegado à América via Estreito de Bering, região congelada há milhares de anos que permitia a ligação entre Ásia e América do Norte.

Achados mais recentes (desde os os anos 70) revelaram que há 18 mil anos atrás havia gente no atual Chile (sítio de Monte Verde), 25 mil no Mato Grosso (sítio de Santa Elina) e 30 mil anos no Piauí (sítio do Boqueirão da Pedra Furada). No mínimo, o autor deveria ter considerado esses sítios no seu debate.

O que me parece é que Yuval Harari faz é deslegitimar a ciência feita em países de terceiro mundo e reforçar velhos preconceitos de arqueólogos estadunidenses orgulhosos por seus achados e suas teorias que “confirmam” a pretensa superioridade gringa sobre os inferiores e tardios sul-americanos. Tenho tranquilidade para dizer isso ao considerar que o autor praticamente não cita pesquisadores da América Latina. Basta dar uma olhada na bibliografia para confirmar isso.

Ideologia do progresso

O primeiro capítulo do livro Sapiens se chama “Um animal insignificante” e trata dos humanos “pré-históricos”. A explicação do autor para o uso do adjetivo “insignificante”: os antigos humanos não tinham um impacto maior sobre o ambiente do que gorilas e vaga-lumes. Isso quer dizer que gorilas são insignificantes? Confuso.

O autor parece que tem problemas com esse animal humano “pré-histórico” porque também o define como “marginal” e que “vivia uma vidinha em um canto da África”.

Pela escolha das palavras, parece que ao autor o ser humano, quando não está usando computadores, poluindo rios ou acabado com a Amazônia, é um ser incompleto. Dito de outra forma, os humanos antigos são inferiores perto do que vão se tornar. Pode ser que eu esteja levando a coisa a sério demais, ou que o autor esteja usando figuras de linguagem que eu sou incapaz de compreender. Mas, pra mim, o raciocínio desse capítulo é inspirado na ideologia do progresso, aquela que coloca o homem branco europeu ou eurodescendente dos séculos XIX ao XXI como a meta e ápice da história humana.

Insignificante ou marginal não me parecem palavras adequadas para definir qualquer animal, ainda mais em um trabalho científico. Afinal, o que é insignificante pode ser descartado. É preciso enfatizar isso: nenhum humano é descartável ou insignificante. Se pensarmos na concepção de humano dos povos amazônicos, que compreende o conjunto da vida no planeta, a advertência torna-se mais grave ainda.

Ler ou não ler?

Se alguém me perguntar se vale a pena ler esse livro, até digo que sim. Mas tem que ler atento aos problemas. Acho bem mais produtiva a leitura de outros livros, como o necessário O Despertar de Tudo, de David Wengrow e David Graeber. No mínimo, diferente de Harari, os dois autores apresentam argumentos amparados em uma bibliografia muito extensa, o que conferiu uma caráter mais científico à obra.

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